Gostaria de começar este post tardio , dizendo que eu olho com um certo desdém para quem me diz “Feliz Dia das Mulheres”.
Em primeiro lugar, dia 08/03 não é o “Feliz Dia da Mulher, toma uma florzinha”, é o Dia Internacional da Mulher, comemorado mundialmente, quando a ONU – tardiamente – estabeleceu esta data oficialmente em 1975 para que o mundo nunca se esquecesse das mulheres operárias que perderam suas vidas em protestos por dignidade de emprego e de vida desde o início do século XX.
Para mim, não é um dia feliz, muito pelo contrário. Infelizmente ainda temos que ter dias como esses para lembrarmos que a luta por igualdade de gênero ainda se faz mais presente do que nunca! Para lembrar que o homem ainda tem o salário melhor que a mulher, mesmo em igualdade de cargos e funções.
É um dia para lembrar que depois de um dia exaustivo de trabalho, temos que pegar os filhos na escola, fazer a janta, dar um jeito na casa para no dia seguinte marcar novamente o ponto na empresa.
É um dia para lembrar que, mesmo que os políticos façam discursos dizendo como somos fofas e guerreiras ao mesmo tempo, somos vítimas de feminicídio diariamente, somos vítimas de uma desigualdade velada.
Aqui no estado do Rio de Janeiro, o governo estadual teve a “brilhante e feliz idéia” de neste dia – 08/03/2025 – homenagear o dia fazendo uma campanha para prender homens que já tinham mandato restritivo por violência contra a mulher.
Nunca senti tanta vergonha na minha vida, pois pensei na mulher que tinha sido esfaqueada pelo marido no ponto de ônibus em frente à prefeitura de uma cidade fluminense no dia 07/03, ou a que foi morta pelo namorado no dia 06/03. Ai…ai…ai… por apenas dois dias da campanha maravilhosa do nosso estado… quem sabe essas mulheres não estariam vivas.
Ontem, dia 10/03, a grande cientista brasileira Nisia Trindade, fez seu discurso de saída do Ministério da Saúde, dizendo indignada que durante os 25 meses que ela esteve a frente da pasta, sofreu ataques misóginos a sua reputação como cientista e como mulher.
Para mim, que assisti ao discurso, foi um dos piores momentos da minha vida, tanto como mulher quanto como cientista.
O que mais me dói não são as flores dos ingênuos, é o apagamento sistemático desse dia de luta pela máquina política e empresarial, transformando-o em um dia para comemorar quem teve a “sorte” de nascer mulher, em detrimento do azar das que morrem mulher, pela violência, pelo abandono, pelo cansaço da luta.
Em tempo: enquanto eu acabo de formatar o texto para publicação, acabo de ler no jornal que um homem invadiu uma delegacia para tentar matar sua namorada que estava lá dentro. Infelizmente hoje não é 08/03.
A Redençao de Cam. Pintura de Modesto Brocos, 1895
Eu escrevi este ensaio na intenção de mostrar historicamente como a ideia de uma Nação Saudável (séculos XIX e XX) não apenas passa pela questão étnica mas também pela escolha do melhor “corpo feminino”. Este ensaio se encontra dividido em duas partes: A Redenção de Cam (1) e Corpos femininos e a Nação Saudável – A Redenção de Cam (2).
No quadro “A Redenção de Cam” de Modesto Brocos, pintado em 1895, vemos a figura de duas mães, a mais velha negra em pé, com as mãos para cima como que “agradecendo”, a mais nova mestiça, sentada apontando a mais velha para a criança branca no colo. Ao fundo há um homem, o pai branco olhando com orgulho para a criança. Uma das teses mais aceitas sobre esse quadro, pintado pouco depois da libertação dos escravizados brasileiros, traz a ideia de que o embranquecimento da população era necessário para que o Brasil se tornasse uma Nação saudável.
A perspectiva europeia de superioridade intelectual do homem branco, o chamado “Apolo Belvedere”, aliada com o advento das ideias raciais /genéticas para que houvesse a escolha do tipo de sociedade que era racialmente saudável, o Brasil inicia o processo de embranquecimento da raça após séculos de miscigenação dos brancos europeus com os índios e negros.
A eugenia como melhoramento genético começa a ser, não apenas difundida, mas também uma prática cientifica recorrente, associada ao perfil social do que seria uma nação saudável. Neste processo a ciência escolhe quem se reproduz e quem não se reproduz. No Brasil este processo se desenvolveu mais suave no Brasil devido à influência da Igreja Católica.
Esse processo eugênico sempre foi bastante discutido, mas uma questão a ser levantada tem relação com o “receptáculo” deste processo. Qual o tipo de mulher seria a mais apropriada para a gestação destas novas gerações? Além do aspecto da etnia, algo a se refletir é sobre o que seria a “mãe ideal”, que pudesse educar os participantes da nação futura.
Do ponto de vista religioso, a inferioridade, a discriminação racial e escravidão dos negros tem sua justificativa na mitologia da maldição de Cam, que é uma interpretação específica de um episódio bíblico envolvendo Noé e seus filhos, mencionado no livro de Gênesis. A história relata que Noé, após o dilúvio, plantou uma vinha, ficou bêbado e se deitou nu em sua tenda. Seu filho Cam viu a nudez de seu pai e contou a seus irmãos, Sem e Jafé. A interpretação da maldição ocorre a partir da reação de Noé quando acorda e descobre o que aconteceu. Ele amaldiçoa a descendência de Cam, especificamente seu filho Canaã, dizendo que eles seriam escravos dos descendentes de Sem e Jafé. Essa interpretação foi usada do ponto de vista da história da religião para justificar a escravidão e discriminação racial contra os povos africanos originários de Canaã.
Aliado a esta visão da mitologia, e no século XIX, com a exploração acontecendo em regiões não europeias, e com o estudo sistematizado de diferentes culturas, há a utilização do conceito de evolução social. Para uma sociedade judaico-cristã, qualquer forma social-religiosa diferente de sua visão, toma a forma de primitivo e eram inspiradas pelo medo e confundidas com profanação e higiene (DOUGLAS, 2010)
Segundo DOUGLAS (2010) “a sujeira é, essencialmente, desordem. Não há sujeira absoluta: ela existe aos olhos de quem a vê. Se evitarmos a sujeira não é por covardia, medo, nem receio ou terror divino. Tampouco nossas idéias sobre doença explicam a gama de nosso comportamento no limpar ou no evitar a sujeira. A sujeira ofende a ordem. Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o ambiente”. E no século XIX, onde os germens são os causadores das doenças, que locais insalubres representam proliferação de doenças e vetores, causando temor de “locais e objetos sujos”, sociedades que não são da Europa ocidental ou não utilizam seus valores científicos e morais são considerados impuros em seus costumes e crenças.
Robertson Smith (citado por DOUGLAS) diz que “distinguir entre o santo e o impuro marca um real avanço sobre a selvageria”. Há que se enfatizar que o “santo” possui intima relação com crenças judaico-cristãs, o que divide a questão de ser puro/impuro e/ou primitivo/avançado tem intima relação com o avanço social e tecnológico do grupo em questão. Para ele, o homem civilizado moderno representa um longo processo de evolução.
Nesta perspectiva, práticas ritualísticas envolvendo contato com cadáveres, saliva, sangue eram consideradas transmissores do “perigo”. Este perigo também se manifesta em grupos que se alimentam de animais proibidos pelo Levítico, como porco, lebre, lagarto, entre outros.
Religiões de matriz africana eram consideradas sujas, impuras, pelo contato com o sangue de animais por exemplo. E essas práticas tinham que ser exterminadas para promover o processo de limpeza do grupo envolvido. Por outro lado, a moral judaico-cristã inserida no contexto da evolução científica e social do século XIX, tem como objetivo “reviver a religião no homem educado, torná-la intelectualmente respeitável, criar um novo fervor moral e assim produzir uma sociedade reformada”(DOUGLAS, 2010).
No Brasil um dos principais expoentes da tese do embranquecimento foi João Baptista de Lacerda, cientista eleito para representar o Brasil no Congresso Universal das Raças (Londres, 1911). Esse congresso reuniu intelectuais do mundo todo para debater o tema do racialismo e da relação das raças com o progresso das civilizações. No Congresso, há a reiterada ideia de que “nenhuma (religião) fez mais que a religião do Christo em favor da paz e da Concordia da Humanidade” (LACERDA, 1911).
Quanto à moralidade da sociedade, “O valor do homem se mede pelo gráo de sua intelligencia, pelas qualidades do seu sentimento, e do seu caracter, pelas suas aptidões innatas ou adquiridas, pela consagração do seu esforço em favor das bôas causas e das grandes idéas” (LACERDA, 1911)
Esta perspectiva é corroborada com os princípios científicos em voga no século XIX, quando a craniometria traz ao campo do saber a questão das medições craniométricas. Por volta de 1789, o escritor e pastor suíço Johann Kaspar Lavater propôs a teoria de julgar o caráter moral de uma pessoa por suas feições e sua expressão. Para ele, a fisiognomia era a ciência de descobrir a relação entre o exterior e o interior, entre a superfície visível e o espírito invisível que ela cobre. Lavater se referia às deformações de nascença, às desproporções, à falta de simetria e, sobretudo, à cor dos indivíduos; ou seja, a qualquer um não nascido com perfeitas características caucasianas. (KOUTSOUKOS, 2020).
No século XVIII e início do século XIX, a influência causada pela ciência no sistema de classificação dos seres vivos determinou padrões tipológicos para o homem (Homo sapiens). Uma técnica utilizada na ciência européia do século XIX – século de classificações e medidas – foi a craniometria. Alguns estudos da época comparavam tamanhos e formas do crânio das mais diversas etnias e definiam o ideal de beleza das estátuas greco-romanas como superioridade e com o crânio dos símios como inferioridade.
Ilustrações com crânios deformados do livro Types of Mankind de Nott & Gliddon
Utilizando este sistema de classificação houve o estabelecimento de uma hierarquia racista, onde os brancos estão no ápice da hierarquia, e por último, na posição mais inferiorizada, os negros. Assim, os que não pertencem à cultura branca e progressista da Europa Ocidental e dos Estados Unidos são tratados como inferiores. No material utilizado por Nott & Gliddon, o crânio do negro é propositadamente aumentado e alongado longitudinalmente para imprimir uma semelhança maior à anatomia do chimpanzé do que do homem caucasiano. No texto, os autores ainda afirmam que “uma cabeça como a do grego nunca é vista em um negro, nem uma cabeça como a do negro em um grego”. (NOTT; GLIDDON, 1855)
Na primeira definição formal das raças humanas, em termos taxonômicos modernos, Lineu mesclou traços do caráter com anatomia. O Homo sapiens afer (o negro africano), afirmava ele, é “comandado pelo capricho”; o Homo sapiens europaeus é “comandado pelos costumes”. (GOULD, 1991)
E para que as sociedades alcançassem a perfeição humana, ou seja, o homem comandado pelos costumes – moral e social – e não mais pelos caprichos, visto como algo primitivo, um processo de transformação começou a ser criado.
Neste pensamento, existe a teoria neolamarckista baseada na herança dos caracteres adquiridos do meio, seria decisiva para a adoção de um modelo menos radical de eugenia, uma vez que não fazia distinções rígidas entre natureza e cultura apostava em uma “eugenia preventiva” como alternativa para o melhoramento racial das futuras gerações, associando-se estreitamente ao “ambientalismo médico” e às medidas de reforma do meio. (STEPAN, 2005)
Souza (SOUZA, 2016)nos traz a diferença do processo eugênico realizado em países como Estados Unidos, Alemanha, Suécia e Inglaterra, que foram baseadas em políticas extremas como a segregação racial e o controle de reprodução humana e o processo eugênico realizado na America Latina e em especial no Brasil, que o autor chamou de suave e se deu mais no âmbito da saúde pública e educação. E a partir deste ponto, surge o questionamento de saber para qual parcela da população brasileira a saúde pública e a educação atingiria. Além disso, o autor discorre sobre o papel da Igreja Católica ligada ao controle de natalidade e reprodução humana e do papel dos cientistas brasileiros, ligados ao pensamento médico cientifico de origem latina, principalmente a francesa
Segundo este autor, “para os intelectuais brasileiros, nos quais se incluíam Renato Kehl e Roquette-Pinto, a ciência prometia solucionar o suposto “atraso” civilizacional do país, os efeitos da miscigenação racial e toda a miséria relacionada à chamada “questão social”, como a pobreza, as inúmeras doenças, a desnutrição e o analfabetismo”.
Uma questão a ser levantada neste processo de eugenia é a questão dos corpos femininos. Essa Nação só viria a se efetivar com a mãe ideal. E qual seriam os parâmetros para selecionar a mãe ideal? Quais características femininas seriam exigidas para a “boa procriação”?
Bibliografia:
BIROLI, F.; MIGUEL, L. F. Gênero, Raça, Classe: Dominações Cruzadas e Convergências na Reprodução das Desigualdades. Mediações – Revista de Ciências Sociais, [S. l.], v. 20, p. 27–55, 2015.
DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. Campinas: Editora Perspectiva, 2010(debates).
GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
KOUTSOUKOS, S. S. M. Zoológicos Humanos: gente em exibição na era do imperialismo. Campinas: Editora Unicamp, 2020.
LACERDA, J. B. de. O Congresso Universal das Raças reunido em Londres (1911) : apreciação e commentarios. Brasil: Papelaria Macedo, 1911. Disponível em: http://bdor.sibi.ufrj.br/handle/doc/16.
NOTT, J. C.; GLIDDON, G. R. Types of Mankind: Or, Ethnological Researches, Based Upon the Ancient Monuments, Paintings, Sculptures, and Crania of Races, and Upon Their Natural, Geographical, Philological and Biblical History. Philadelphia: Lippincott, Grambo & Company, 1855.
SOUZA, V. S. A eugenia brasileira e suas conexões internacionais: uma análise a partir das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, 1920-1930. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, [S. l.], v. 23, n. supl., p. 93–110, dez. 2016.
STEPAN, N. L. “A hora da eugenia” raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005(Coleção História e Saúde).
TOLEDO, E. T.; VIMIEIRO, A. C. A Vida Sexual, de Egas Moniz: eugenia, psicanálise e a patologizaçao do corpo sexuado feminino. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, [S. l.], v. 25, n. supl, p. 69–86, ago. 2018.
VALERO, S. P. `La raza entra por la boca’: nutrición y eugenesia en Colombia, 1890-1940. Recorridos de la historia cultural en Colombia. Bogotá, Colômbia: Universidad Nacional de Colombia; Universidad del Rosario; Pontificia Universidad Javeriana, 2019. p. 396–435.
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